Portugues


Umbanda

-Você é filha de Oxum - foi a unica coisa que falou pra mim, e com um sorriso de orelha a orelha, o dono de uma banca de produtos religiosos.
-Como é que é? – Disse eu perplexa.
-Você é filha de Oxum- voltou a repetir o homem sorrindo mas notava agora, com um olhar muito forte.
-Ah ta, disse eu sem entender muito aquilo que me falava e me virando imediatamente pra Veri, minha colega da faculdade e moradora da mesma casa de estudande aonde eu ficava.
-O que é que ele falou? -perguntei.
Ela riu:
-É que você é bonitinha, ele falou que você é filha de Oxum porque você é bonita e essa é uma caracteristica das filhas da Oxum. Eu também sou, pelo menos eles dissem.
-E quem é Uxum?
-Oxum. E uma santa pra quem acredita na religião.
-Qual religião?
-Umbanda. A Oxum é uma santa da Umbanda e ela na realidade é uma mixtura entre a Virgem Imaculada e uma Deusa Africana. Aliás, a Umbanda sincretiza elementos de varias culturas –Respondeu a Veri.

E era mesmo, a imagem que eles vendiam da Oxum tinha o manto azul como da virgem inmaculada mas ao inves de levar o veu amarelo na cabeca, esta santa levava os cabelos soltos e o vestido é que era amarelo com os ombros a mostra, de uma maneira muito sensual. Eu continue olhando não com pouca curiosidade toda aquela parafernalia de imagens de santos cheios de cores e com atitudes mais humanas do que religiosas. A gente não comprou nada naquela banca, pelo menos eu não comprei. A gente tinha ido ao mercado público para comprar minha primeira cuia e minha primeira bomba, eu já sabia fazer chimarrão, agora so precisava meus proprios utensilios, aliás, um dos primeiros costumes que eu aderi a minha rotina foi beber chimarrão, especialmente quando virava as noites estudando.

Quando a gente terminou de fazer as nossas compras fomos direto pro meu quarto. Ali eu primeiro deitei na minha cama como eu costumava fazer cada vez que chegava da rua e a Veri pegou a minha termica pra enche-la de agua. Era proibido esquentar a agua com rabo quente naquela casa de estudante, mas como todo mundo, eu também tinha um que colocava na termica até ver as boilinhas de agua se concentrar na superficie. Depois que a Veri esquentou a agua, eu coloquei a herva na cuia e botei uma folha de papel no topo dela e virei a cuia do avesso pra depois delicadamente virar a cuia de lado sujeitando o papel de tal maneira que a erva asentasse num lado so da cuia. Logo com muito cuidado botei a agua esquentada naquele espaco aonde não tinha erva e pronto, o chimas estava pronto.

-O Veri, a umbanda é aquela religião aonde matam galinhas?
-Não, não, isso acontece regularmente na quimbanda. Eu so tenho praticado a umbanda que é uma religião branca porque vc não usa a umbanda pra danar outras pessoas. Você so participa da umbamba pra fazer o bem, fazer pedidos e não precisa matar galinhas porque pra fazer o bem você não precisa do sangue.
-Pera ai, pra fazer o mal você tem que matar galinhas?
-É pelo sangue do animal, eles matam animais pra obter o sangue, que eles acreditam é a fonte da vida. Assim eles ofrecem esse sangue para reforcar as forcas vitais representadas pelos orixas e obter o seu AXE. Mas umbanda não precisa disso tudo por ser uma religião branca.
-E quais são as outras religiões?
-Quimbanda e Camdomble. Assim, na quimbanda você mata animais porque eles praticam a magia preta. Já o camdomble seria um meio termo entre a quimbanda e a umbanda.
-Hummm, agora eu fiquei curiosa para saber mais. A proxima vez que passar pelo mercado vou comprar uma figurinha da Oxum, ja que vocês todos dizem que ela é a minha mãe.
-Isso é o que a gente pensa né? Você tem que ir com uma mãe de santo e tirar as cartas pra ver se isso é verdade.
-Pah Veri, e você acredita nisso?
-Olha, eu acredito sim.

No seguinte semestre, na minha classe de antropologia I, a professora mandou fazer um ensaio sobre manifestacoes religiosas. Os ensaios seriam individuais e o tema livre a escolher. Naquela epoca, eu sabia que um dos meus colegas da faculdade, O Emerson, era da religião e ja tinha me convidado varias vezes assistir aos rituais que a familia dele praticava lá no terrreirinho que tinham no fundo da casa. Aquela mesma noite liguei pro Emerson e contei pra ele que queria fazer um trabalho sobre a Umbanda. Ai ele falou que pra sorte minha, em duas semanas ia ter um encontro na casa dele, mas a gente marcou pra eu ir na casa dele antes, assim a mãe dele poderia falar comigo mas seriamente sobre a experiencia que eu ia ter.

No seguinte sábado eu fui pela primeira vez na casa do Emerson. A casa era antiga, de madeira, com duas janelas bem grandes do lado da porta e um pequeno jardim separando a casa da rua. Logo no começo me chamou a aténção os tres pequenos gnomos dispostos no jardim bem do lado direito da casa. Os gnomos pareciam estar felizes e dançando. Toquei a campainha e o Emerson me recebeu com o sorriso de sempre. So entrar naquela casa velha ja era uma experiencia magica. Tudo era antigo naquela casa e como era de tardinha aquele cheirinho de café com pao doce dava pra matar qualquer um. A casa era longa, eu caminhava detras do Emerson pasando da sala da frente, pra sala de jantar, o banheiro, uns quartos, até finalmente dar na cozinha. La na cozinha fui apresentada aos pais do meu colega e a irma dele que tinho ido visitar a familia naquela tarde. A gente sentou-se pra beber um cafézinho e  conversamos sobre minha nova vida no Brasil. Eles me perguntaram sobre o Peru e eu a eles sobre a Umbanda.

Depois de fazer minhas anotações sobre a religião, os orixas, os pai de santos e muitos outros conceitos, a Leila irma do Emerson, fez questão de deixar bem claro a seriedade do asunto: "Pra praticar a Umbanda você tem que ser catolica e isto não é uma religião qualquer. A gente sempre tem convidados, gente que quer se iniciar na Umbanda, que tem curiosidade, e a gente sempre esta aberta pra aceitar pessoas de diversas crencas mas você tem que vir de peito aberto, de mente aberta pra aceitar e respeitar o que você esta por ver".

Depois disso dona Zilda, mãe do Emerson, convidou-me para ir com ela no fundo da casa. A gente saiu pela porta posterior da cozinha que dava pra o jardim e caminhamos por entre muitas arvores até chegar ao que parecia ser um pequeno apartamento construido ao longo do fundo do terreno da casa. Igual que na frente da casa, havia uma porta bem no meio da construção com duas janelas bem grandes do lado, que ali atras tudo: portas, paredes e janelas, tudo era de cor branca. Dona Zilda convidou-me para dentro daquela habitacão, fechou a porta e quando ligou as luzes eu vi, bem na minha frente, um grande altar disposto de canto a canto da casa e coberto com um manto vermelho cheio de imagens de santos e orixas, com muitas velas e muitos outros detalhes que escapam da minha memoria. Era uma imagem sorprendente, nem numa igreja tinha visto tantas imagens juntas até porque aquele altar -que estava construido ao longo de todo o fundo da casa -que seriam de uns 10 metros de largura- estava totalmente abarrotado de imagens cristas, africanas, e muitas outras que não consegui identificar aquele dia.

Era evidente a satisfacão da mãe do Emerson ao ver a minha surpresa diante daquele altar.
-O que você achou? -perguntou ela pra mim.
-Impressionante... não tenho palavras. -Respondi e começei a perguntar sobre a identidade de alguma das imagens que tinha na minha frente, entre elas São Jorge, Iemanja, Iansa e muitas outras, enquanto a mãe do Emerson explicava pra mim a historia de cada santo. Finalmente  chego a vez da Oxum.

-No mercado publico me disseram que sou filha de Oxum –Disparei
-Pode ser, a gente pode ver, se você quiser é claro.
-Eu quero sim.

Ali dona Zilda convidou pra me sentar na mesa quadrada que tinha do lado direito da habitação. A mesa que também estava coberta por un lenço vermelho tinha no meio um baralho cigano. A gente sentou e dona Zilda começou embaralha-as.

-Agora eu vou tirar as cartas pra você e vamos ver o que o oraculo tem pra nos.
-Ta bom.

E assim, ela me fez cortar o baralho, colocando as cartas uma do lado da outra e do centro pra fora.

-Agora vamos revelar as cartas uma por uma, esta do centro é você, mas temos que ver todas no contexto pra dar uma leitura apropriada. Ta certo?
-Esta certo dona Zilda.

A carta do centro era o mar, a do lado esquerdo um cachorro e sobre a carta do mar, uma mulher sentada numa cachoeira penteando os cabelos. Dona Zilda começou a explicar o meu  passado e presente, quem era eu e dos perigos que iria enfrentar no futuro. O cachorro seria um homem, possivelmente meu pai quem daria proteção pra mim. E a mulher sentada na cachoeira, Oxum, minha mãe e santa protetora.

Eu fiz duas perguntas mais, sobre minha familia e se eu deveria ficar no Brasil ou ir embora. E desta vez eu examinei com muito cuidado se ela estava usando algum truque ou controlando as cartas que saiam. Ela tirou as cartas mais duas vezes e eu as cortei de novo. Em todas elas as cartas reveladas seriam diferentes apenas a carta de cima, aquela que estava sobre a carta do meio seria sempre a mesma, a mulher na cachoeira penteando os cabelos.

-Tua santa é forte.
-Devo ficar no Brasil ou ir embora?
-Deves ficar. A proteção é grande, mas vejo muita viagem, muita mudança, muitos perigos, muita instabilidade.
-Alguma coisa de ruim.
-O futuro só Deus que sabe menina. Teras proteção, mas tem muita coisa pra você passar ainda. Muita coisa ainda por ver. Pede sempre por proteção e se mantem fiel a Deus, ele vai te ajudar.

Eu decidi não perguntar mais coisas, primeiro porque eu não acredito muito nas cartas nem sou muito religiosa e pensei que, até por respeito, deveria deixar isso ali. Porem, é justo confessar que, no meio dequela particular habitação, não gostei muito do que a dona Zilda estava me falando e pra falar a verdade me deu um pouco de medo.

No fim de semana seguinte, voltei pra casa do Emerson pra ver um trabalho de Umbanda à noite. A familia do Emerson me recebeu com muito carinho, como sempre e o cheiro de comida me fez pensar que iriamos jantar primeiro. A dona Zilda entou me deu uma camisola branca pra vestir e depois me levou pro quarto dos fundos.

-A gente gostaria de ter nosso terreirinho aqui mesmo, no jardim, mas por respeito ao vizinhos a gente faz os nossos trabalhos no quarto dos fundos. -Falou a dona Zilda.

O chão do quarto estava coberto de folhas verdes e desta vez todas as velas estavam acessas. Foi então que o pai do Emerson e outros familiares entraram com diferentes pratos de comida e colocaram-os no altar. Dai o Emerson e seus primos fizeram uma roda e começaram a tocar diferentes instrumentos de percussão enquanto os diferentes convidados cantavam, e as mulheres faziam –o que parecia- pedidos de protecão. Depois de varios minutos, a batucada se sentia muito forte naquele quarto e um dos primos começou a requebrar no meio do grupo. O Emerson virou pra mim e explicou que o santo estava descendo. O primo se estremecia cada vez mais ao ritmo do batuque, quase que convulsionando enquanto o resto do grupo cantava quase que em extase.

Depois daquele espectaculo, não sabia eu, chegou a minha vez. Eu tive que sair pro centro e comecei a dançar. Como eu sempre gostei de ritmos africanos, não foi problema pra mim a dança e até que disfrutava daquilo tudo, até sentir um barulho ensurdecedor e ver que por tras de mim uma chamarada de fogo saia do chão. Eu berrei e saltei sobre o Emerson, me agarrei dele quase que aranhando-o. Ele me abracou tratando me acalmar e falou que aquilo era polvora, que eles usavam efeitos especiais pra dar um toque ao ritual.

-Como é que você não me fala de uma coisa dessas Emerson, quase tive um ataque meu Deus!.
-Me disculpe, é que a gente esta tão acostumada a isso tudo que esquecemos de te falar. O negocio é viver intensamente o processo que só precenciamos aqui.

E a gente voltou a roda até o ritual acabar. A festa acabou mesmo quando um dos primos do Emerson começou a dançar com uma espada. Ai o Emerson me alertou:

- Maria se prepara, você vai recever o seu Axe.

O primo continuou dançando e começou delicadamente a encostar a espada na testa de todos os convidados e uma vez que acabara saiu do asentamento, sinal que o ritual tinha acabado. Depois disso todos trocamos de roupa, comimos e finalmente me despedi para ir com o Emerson até um bar na Cidade Baixa aonde outros amigos da faculdade nos esperavam pra beber um chopinho. O Emerson perguntou pra mim no caminho se eu tinha gostado. Eu respondi que sim.

Meses depois, numa quentissima manha de dezembro, eu fui pro quarto da Veri para depois –como era o nosso costume- ir até a banca de frutas que ficava na esquina da casa de estudante. Sempre tomavamos o nosso café da manha com frutas que compravamos fresquinhas no mesmo dia. Mas aquela manha a Veri me pediu pra acompanhar ela até o mercado publico. Ela tinha ficado muito sensibilizada com meu trabalho sobre a Umbanda e quis fazer uma surpressa pra mim. Quando a gente chegou no mercado fomos direto pro posto das flores e a Veri falou entao que aquele era o dia da Oxum, e que tinhamos ido la pra comprar flores amarelas pra ela. Eu agradeci pelo gesto mas preferi não perguntar nada e deixar ela comandar o lance, foi assim que depois que compramos as flores fomos pra beira do rio que ficava ali perto, agradecemos a nossa mãe por aquele ano e pedimos proteção pro seguinte. Depois disso, deixamos as flores amarelas ser levadas pelo rio.





A Louca


Impossível lembrar daquele bairro português sem pensar na louca. A primeira vez que a vi caminhava curvada para frente, olhando para baixo e falando sozinha. Era verão, mesmo assim levava um sobretudo bege desbotado. Com o tempo descobri que sempre a veria vestindo-o fosse qual fosse a estação. Ela vinha na minha direção e tentei passar o mais longe dela, porque sempre tive medo dos loucos e das suas reações inesperadas. Cheirava mal, nem olhei diretamente para ela, mas percebi que embora branca, a sua pele tinha uma tonalidade cúprica, provavelmente adquirida pela exposição constante ao sol. Tinha muitas rugas também, parecia velha. Nunca soube seu nome, nunca troquei nem uma palavra com ela. Mas também, nunca a esqueci.

Uma vez, andava eu pela rua principal quando, sem mais nem menos, lá estava ela na minha frente, caminhando e conversando com outra mulher muito parecida com ela. As duas eram brancas, cabelo loiro pintado no mesmo tom. Ocorreu-me que tal vez fossem irmãs, e que a irmã normal ajudasse a pintar o cabelo da outra com as sobras da tinta. Apressei-me para chegar perto delas e escutar o que as duas falavam, mas não entendi nada, apenas achei que as duas tinham o mesmo sotaque português. Mais um sinal para pensar que fossem irmãs, afinal, só um familiar para caminhar na rua com uma louca.

Certo dia conversava com meu amigo Mascarenhas quando vi a louca entrar no restaurante português. O porteiro correu para espantá-la com uns gritos um tanto estranhos: “Paaaah, paaaah”. E a louca saiu agitando os braços para o alto, berrando como um animal assustado. Reparei então que Seu Manoel, o dono do restaurante, estava ao nosso lado e olhava para a cena tranquilamente. Então, sem tirar a vista da louca, falou quase que num suspiro: “Era tão bonita aquela moça!... Quando passava todos paravam para olhar”.

-Que idade ela tem? Perguntei.

-Não chega aos quarenta, eu a vi crescer, era uma loirinha linda e olha ela agora…

E, antes que eu pudesse fazer outra pergunta, seu Manoel começou a gritar com o pessoal do caminhão das frutas que estava no parking lot e foi na direção deles.

Perguntei pro Mascar se ele sabia da historia da louca.

-Sei não. Só sei que a família dela não sabe mais o que fazer com ela.

-Foi problema de drogas? Perguntei de novo.

-Deve ser né? Para ficar daquele jeito.

Outro dia, a caminho da lavanderia, vi que a louca tinha um dos olhos roxo. Também notei que não tinha dentes. Pelo menos faltavam os da frente. Ela estava meio agitada, murmurando coisas inteligíveis. Não sei o porquê, mas eu estava quase segura que aquele roxo ela ganhou em algum guetto. Tinha um do outro lado da estação que divide e separa a cidade entre o bairro dos portugueses e o bairro dos negros. Eu dava minha cara a tapa que aquela mulher foi vender-se por droga e que, depois dos seus serviços, só teria recebido aquele soco na cara. Pensei na coitada fazendo sexo oral sem seus dentes em sujeitos sujos e fedorentos por um pouco de merca. Pensava muito nela naqueles dias e pensava também muito na vida e se o destino realmente existe. Deve ter um ponto entre o momento em que você lança os dados e o resultado final que o destino crava. Todos, em algum momento, arriscamos alguma coisa, mas é só no rolar dos dados que o futuro acontece. Para uns é par, para outros é impar.



A Dona dos gatos


A Dona tinha uns quarenta e poucos anos, muito bonita – belo corpo, ruiva de cabelos lisos curtinhos, pele clara tipo pêssego, porem muito seca. Tal vez por isso tinha muitas rugas para sua idade, denotando que ia envelhecer rápido. Apesar disso, ela continuava muito linda – mas, seu melhor atrativo era ela mesma. Tinha uma personalidade forte, marcante e chamava as coisas pelo nome com muita naturalidade. Alias tudo nela parecia natural, fresco, espontâneo. Por isso propagava bastante simpatia. E o melhor de tudo, não se intrometia na vida de ninguém. E é que ela tinha uma vida própria, com muitas atividades, independente, sozinha. Viajava muito também, tinha seu próprio negócio, responsabilidades com seus familiares e muitas contas para pagar.

E lá sempre estavam eles, nas escadas que levavam da rua ate à porta da casa. Prinzessin, Beethoven, Johann e Mephisto. Os gatos da dona com diferentes cores e personalidades. Prinzessin era branquinha com preto, muito doce e amigável. Recordo sempre dela nos dias de chuva paradinha por detrás da janela da frente, dando um miau para mim. O Beethoven, por sua vez, era gris o mais carente de todos. Podia ficar horas no meu colo e seguia-me para tudo quanto era canto. Ele queria sempre entrar na minha casa, mas pela minha alergia nunca deixei. Pareceu-me que queria ser adotado por mim. Depois de certo tempo ele caiu na real e procurou outro lar. Ele foi adotado muito tempo depois pelos vizinhos da esquina. Já o Johann era de um amarelinho cor de leão e era o mais briguento de todos. Sempre dando tapas nos companheiros e durante a noite se perdia pelas ruas a procura de briga com gatos vizinhos. Por fim, o Mefisto preto como ele só, parecia estar sempre pensativo, observando, quase que estudando a situação ou as pessoas sem a menor pressa. Era demorado para tudo e seu olhar não negava isso.

Toda vez que tinha um carro novo na garagem da casa, ai vinham eles a praticar o ritual de sempre. Formavam uma roda ao redor do veículo e cheiravam tudo. O Johann por vezes tinha até a coragem de cheirar o dono do carro. E esse ai não tinha medo de nada. A Prinzessin, sempre despreocupada, cheirava um pouquinho o veículo, mas daí olhava pra galera, olhava pra rua, olhava pro céu. Parecia ficar ali só para acompanhar a turma. Enquanto ao Bethoveen, ele sempre subia no capó do carro para se aquecer com o calor do motor. O Mephisto, é claro, era o ultimo a chegar, mas depois que ele chegava; segura! Ele erguia a patinha e mijava as quatro rodas do carro. Impregnava o lugar com um fedor que não dava para agüentar. Mas ali ficavam eles, na garagem da casa, às vezes até por horas brincando ao lado do carro, embaixo do carro, encima do carro. Eles repetiam a mesma cena, toda semana.



                     Velho amor
                   (Para Adriano)

O dia que a gente separou-se
Sabia que não iria vê-o mais
A gente mudou de casa, de rumo
De Estado, de vida e de situação

Passaram-se muitos anos desde aquele dia
E no mundo sempre tem novas coisas a acontecer
Ganhei email, cartão de crédito, carro, celular
Agora sou outra pessoa, imagino você também.

Muito de quando em quando, eu me lembro de você
Dos momentos felizes, das magoas, da nossa casa
Das promessas de estudantes, dos planes pro futuro
E sinto saudade de tanta conversa jogada fora.

Muita coisa já esqueci, não vou negar
Mas às vezes sinto os gatos me acordando de manha
E o cheiro da madeira molhada dos dias de chuva.

Não lembro muito de você, para que mentir
Mas quando lembro, parece que foi ontem
E que você abrirá aquela porta para mim como antes

Não lembro muito de você, é verdade
Mas a pesar de todos estes anos acredite
Ainda sei seu velho numero décor.